Programa do Festival

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Palavras de Moacir Amâncio

Moacir Amâncio

[Ata]

E, como se tivesses diante de ti uma palheta cósmica,

organizarás o teu mundo de espectros e de filtros,

biblicamente instaurando o mito da criação no caos cotidiano.

Assim, o domingo já não será um impreciso dia

mas o branco em que inicias a semana.

O branco, senhora, a solicitude em pessoa.

A segunda-feira vacilará entre o amarelo e tons pastéis

dessa ordem inaugural.

Sem bruscas rotações, portanto, da dúvida ao egoísmo.

A terça-feira se tingirá de vermelho ou de laranja

conforme o grau de umidade dos teus labirintos.

A quarta mergulhará em marinho e preto

de onde emergirás um tanto confusa. Desgraça pouca é bobagem.

Na quinta viajarás repentina do rosa ao verde-

o desequilíbrio natural te faz bem e rir é sempre muito bom.

A sexta-feira, esta guardará o azul de sempre,

obrigando-te a dizer azul quando ias dizer surpresa.

Sábado, cansada de tantas cores,

descansarás na soma delas todas e te vestirás de sol.



* * *


MITOLÓGICO


ao tentar dizer

desdigo o não dito

na ausência de pernas

cavalgo

existo centauro

nem raro nem mito.


***

como o raio
abre rios no céu
lavras um campo avaro

o papel com sua escrita

colheita de relâmpagos.

***

Das palavras aéreas - Cecília Meireles

Das palavras aéreas - Cecília Meireles


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e se transforma!

Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai palavras,

que estranha potência, a vossa!

Todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota...

A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora...

e dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam...

Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação, nem de hora...

- e estais no bico das penas,

- e estais na tinta que as molha,

- e estais nas mãos dos juízes,

- e sois o ferro que se arrocha,

- e sois o barco para o exílio,

- e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai palavras,

leis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra...

Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois agora?

-Acusações, sentinelas,

bacamarte, algemas, escolta;

- o olho ardente da perfídia,

a velar na noite morta;

- a umidade dos presídios,

- a solidão pavorosa;

- o duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

- e a sentença que caminha,

- e a esperança que não volta,

- e o coração que vacila,

- e o castigo que galopa...

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!

- sois madeira que se corta,

- sois vinte degraus de escada,

- sois um pedaço de corda...

- Sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeira, tropa...

Ai, palavras, ai palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem...

- sois um homem que se enforca!


[Do Romanceiro da Inconfidência; Flor de Poemas, ed. Nova Fronteira]

Festival da Palavra - parceria UNESP Assis e Poiesis