Libertação
Sou um poeta quase místico:
A vida é bela quando é um êxtase.
Ah! não ter um pensamento, um só pensamento no cérebro,
não vigiar a vida, a vida inquieta, a vida múltipla da sensibilidade,
mas vivê-la, de olhos cerrados, num silêncio cheio de ritmos;
não ouvir as palavras frias que mudam o destino,
ou que o fazem semelhante a um autômato;
e saber a toda hora,
saber sempre
que a vida é bela quando é um êxtase.
Canção
Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.
Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.
Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.
Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.
Que tudo o mais é perdido.
Três caminhos
Percorri tantos caminhos,
tantos caminhos andei.
O primeiro era de nácar,
de rosa pura o segundo.
O terceiro era de nuvem,
no terceiro te encontrei.
O primeiro já trazia
teu nome brilhando no ar.
Não era nome de terra:
cantava coisas do mar.
Logo senti que o segundo
já era estrada de encantar.
Mas o terceiro, o terceiro
quantas voltas não foi dar!
Deixou meu corpo na terra,
meu coração no alto-mar.
Virou vento, virou bruma,
perdeu-se, rápido, no ar.
A fábrica do poeta
Fabrico uma esperança
como quem apaga
algo sujo num muro,
e ali, rápido, escreve:
Futuro.
Fabrico uma pureza
tão menina,
tão cristal e tão fonte
que, de repente,
É meu todo o horizonte.
Fabrico uma alegria
que é de ver as coisas
como se só agora
é que nascesse,
A aurora.
Fabrico uma certeza
exata
para cada instante.
A vida não está atrás,
Mas adiante.
Fabrico com o que tiro
de mim mesmo e do mundo
meu dia.
E ao que, em síntese, sou
Junto o que queria.
Fabrico uma hora densa,
como quem descobre.
Ah, quem diria
Que essa hora imensa
Já é poesia?
Emílio Moura
Ode ao primeiro poeta
-Comme lê monde était jeune,
et que la mort était loin!
Georges Chennevière
Quando os homens desceram, um dia, dos montes e se detiveram, trêmulos, diante da planície imensa,
eu te vi erguendo a tua voz forte, límpida e viva.
Eras jovem e tinhas a alegria de quem está descobrindo o mundo.
Foi a tua palavra que modelou a primeira paisagem, deu ritmo aos ventos e [imaginou a beleza ingênua dos primeiros e únicos símbolos . [que se perpetuaram.
Eras criatura e criador.
Estavas no gesto maravilhado que armava as primeiras tendas e na mão
[ indecisa que traçava o desenho mágico dos caminhos
[que se improvisavam;
na imagem da vida em que se embebeu o primeiro surto livre do espírito;
estavas em ti mesmo e fora de ti,
quando os homens desceram, um dia, dos montes e se detiveram trêmulos,
diante da planície imensa...