Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!
Sophia de Mello-Breyner
Poesia
Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.
Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.
Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.
Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos atos que vivi,
Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.
Liberdade
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Os Poetas
Solitários pilares dos céus pesados,
Poetas nus em sangue, ó destroçados
Anunciadores do mundo
Que a presença das coisas devastou.
Gesto de forma em forma vagabundo
Que nunca num destino se acalmou.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Dia do Mar, 1947
No Poema
Transferir o quadro o muro a brisa
A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem limpidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso
Preservar de decadência morte e ruína
O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Livro Sexto, 1962
Arte Poética
A dicção não implica estar alegre ou triste
Mas dar minha voz à veemência das coisas
E fazer do mundo exterior substância da minha mente
Como quem devora o coração do leão
Olha fita escuta
Atenta para a caçada no quarto penumbroso
Sophia de Mello Breyner Andresen
in O Búzio de Cós, 1997
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