Programa do Festival

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Palavras de Sophia de Mello-Breyner

Pudesse eu não ter laços nem limites

Ó vida de mil faces transbordantes

Para poder responder aos teus convites

Suspensos na surpresa dos instantes!



Sophia de Mello-Breyner




Poesia


Se todo o ser ao vento abandonamos

E sem medo nem dó nos destruímos,

Se morremos em tudo o que sentimos

E podemos cantar, é porque estamos

Nus em sangue, embalando a própria dor

Em frente às madrugadas do amor.

Quando a manhã brilhar refloriremos

E a alma possuirá esse esplendor

Prometido nas formas que perdemos.

Aqui, deposta enfim a minha imagem,

Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.

No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu — eco da lua

E dos jardins, os gestos recebidos

E o tumulto dos gestos pressentidos

Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não pelo meu ser que só atravessei,

Não pelo meu rumor que só perdi,

Não pelos incertos atos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei

E em cujo amor de amor me eternizei.




Liberdade


Aqui nesta praia onde

Não há nenhum vestígio de impureza,

Aqui onde há somente

Ondas tombando ininterruptamente,

Puro espaço e lúcida unidade,

Aqui o tempo apaixonadamente

Encontra a própria liberdade.





Os Poetas


Solitários pilares dos céus pesados,

Poetas nus em sangue, ó destroçados

Anunciadores do mundo

Que a presença das coisas devastou.

Gesto de forma em forma vagabundo

Que nunca num destino se acalmou.

Sophia de Mello Breyner Andresen


in Dia do Mar, 1947


No Poema

Transferir o quadro o muro a brisa

A flor o copo o brilho da madeira

E a fria e virgem limpidez da água

Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar de decadência morte e ruína

O instante real de aparição e de surpresa

Guardar num mundo claro

O gesto claro da mão tocando a mesa.

Sophia de Mello Breyner Andresen


in Livro Sexto, 1962





Arte Poética


A dicção não implica estar alegre ou triste

Mas dar minha voz à veemência das coisas

E fazer do mundo exterior substância da minha mente

Como quem devora o coração do leão

Olha fita escuta

Atenta para a caçada no quarto penumbroso

Sophia de Mello Breyner Andresen


in O Búzio de Cós, 1997

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