Programa do Festival

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Palavras de Mário Faustino

VIDA TODA LINGUAGEM

Vida toda linguagem,

frase perfeita sempre, talvez verso,

geralmente sem qualquer adjetivo,

coluna sem ornamento, geralmente partida.

Vida toda linguagem,

há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome

aqui, ali, assegurando a perfeição

eterna do período, talvez verso,

talvez interjetivo, verso, verso.

Vida toda linguagem,

feto sugando em língua compassiva

o sangue que criança espalhará - oh metáfora ativa!

leite jorrado em fonte adolescente,

sêmen de homens maduros, verbo, verbo.

Vida toda linguagem,

bem o conhecem velhos que repetem,

contra negras janelas, cintilantes imagens

que lhes estrelam turvas trajetórias.

Vida toda linguagem --

como todos sabemos

conjugar esses verbos, nomear

esses nomes:

amar, fazer, destruir,

homem, mulher e besta, diabo e anjo

E deus talvez, e nada

Vida toda linguagem,

vida sempre perfeita,

imperfeitos somente os vocábulos mortos

com que um homem jovem, nos terraços do inverno, con-

[tra a chuva,

tenta fazê-la enterna - com se lhe faltasse

outra, imortal sintaxe

à vida que é perfeita

língua

eterna.



PRIMEIRO POEMA



Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas?


Trago a paz e as distâncias vêm comigo

na boca tenho mundos e nos olhos palavras.

Ouvi-me.


Todas as coisas são palavras minhas:

a mais pura das nuvens

a mais pura que veio de longe e não se dissolveu

as colunas incolores além se levantando

quebradas luminosas líquidas colunas colunas

os cavalos que se empinam sobre a espuma

e o calmo silêncio povoando o mar.

Minhas palavras.

Antigas porém há pouco descobertas.

Lentas como o escurecer das nuvens refletidas

como o tremular tranqüilo da vaga adolescente.

Materiais límpidas palpáveis

frias e mornas coloridas de ondas e descendentes pássaros.

Resumidas numa única

impronunciável Palavra.

Mas eu não sou o Senhor

embora venham comigo a Música e o Poema.

Por que vos ajoelhais se eu vim por sobre as ondas

e só tenho palavras?

Ouvi a minha voz de anjo que acordou:


Sou Poeta.


CARPE DIEM



Que faço deste dia, que me adora?

Pegá-lo pela cauda, antes da hora

Vermelha de furtar-se ao meu festim?

Ou colocá-lo em música, em palavra,

Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?

Força é guardá-lo em mim, que um dia assim

Tremenda noite deixa se ela ao leito

Da noite precedente o leva, feito

Escravo dessa fêmea a quem fugira

Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já se sombras vejo que se cobre

Tão surdo ao sonho de ficar – tão nobre.

Já nele a luz da lua – a morte – mora,

De traição foi feito: vai-se embora.)



SOLILÓQUIO

_ Tudo o que importa é ser maravilhoso.



A maravilha: o gesto da inocência.

E do aceno o milagre a renascença

de deslumbrados olhos infantil espaço

e primavera _ o homem volta ao homem;

o inefável gera enfim o mal sublime

no coração deserto; e da terra doença

a rosa azul desponta e levanto-me rei.

_ Eu mesmo sou o encantador do mundo!

Seres e estrelas brotam de meus lábios...

e morro deste belo sofrimento

de ser maravilhoso!



                           _ Ah, quem pudesse

gritar à noite e ao tempo essas palavras

e partir pelo vento semeando versos

e terminando a criação da terra...





FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora. E outros poemas. São Paulo: Cia das Letras, 2009. p.200.

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