Programa do Festival

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Palavras de Antonio Ramos Rosa

Um mundo

É um sonho ou talvez só uma pausa

na penumbra. Esta massa obscura

que ela revolve nas águas são estrelas.
Entre aromas e cores, um barco de calcário

prossegue uma viagem imóvel num jardim.

Vejo a brancura entre os astros e os ramos.

Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra

e que tudo ascende sob um sopro silencioso.

Nenhum sentido mas os signos amam-se

e o brilho e o rumor formam um mundo.


António Ramos Rosa

ACORDES, QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 67




Escrevo-te com o fogo e a água



Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te

no sossego feliz das folhas e das sombras.

Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.

Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.

Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.


O que procuro é um coração pequeno, um animal

perfeito e suave. Um fruto repousado,

uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,

uma pergunta que não ouvi no inanimado,

um arabesco talvez de mágica leveza.


Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?

Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.

As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.

O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,

o grande sopro imóvel da primavera efémera.


António Ramos Rosa Volante Verde - 1986 in Antologia Poética





Quem escreve


Quem escreve quer morrer, quer renascer

num ébrio barco de calma confiança.

Quem escreve quer dormir em ombros matinais

e na boca das coisas ser lágrima animal

ou o sorriso da árvore. Quem escreve

quer ser terra sobre terra, solidão

adorada, resplandecente, odor de morte

e o rumor do sol, a sede da serpente,

o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,

o negro meio-dia sobre os olhos.



António Ramos Rosa

ACORDES, QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 66








O horizonte das palavras


Sem direcção, sem caminho

escrevo esta página que não tem alma dentro.

Se conseguir chegar à substância de um muro

acenderei a lâmpada de pedra na montanha.

E sem apoio penetro nos interstícios fugidios

ou enuncio as simples reiterações da terra,

as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.

Tentarei construir a consistência num adágio

de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.

E na substância entra a mão, o balbucio branco

de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,

um organismo verde aberto sobre o mar,

as teclas do verão, as indústrias da água.

Eu sou agora o que a linguagem mostra

nas suas verdes estratégias, nas suas pontes

de música visual: o equilíbrio preenche os buracos

com arcos, colinas e com árvores.

Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.

O impronunciável é o horizonte do que é dito.



António Ramos Rosa

ACORDES, QUETZAL EDITORES, 1990, 2ª EDIÇÃO, P. 81

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