Ausência
O fundamento das palavras perde-se
na lava dos lábios, quando o fogo do amor
os incendeia. Rios que se enrolam
nos ombros da madrugada, ou simples
regatos que correm por entre os dedos -
vêm ao encontro dos amantes,
para que os seus olhos cansados da noite
os sigam na planície da pele,
em busca de um estuário de sensações.
Porém, as flores presas no cabelo,
sugerindo um movimento de hera, dão-te
uma hesitação de outono, como se o tempo
te cobrisse com a sua sombra. Só o que pensas
te empresta uma realidade - mas não sei o que
pensas. E se o diadema do dia te ilumina
o rosto, e os teus olhos encontram os meus,
espero que me respondas: A que armário
de esquecimento foste buscar o teu silêncio?
Nuno Judice
Enigma
Procurei um graal que pudesse pousar nos teus ombros,
para o encher com o filtro que embriaga os deuses
famintos de amor. Mas tu soltaste os cabelos
e escondeste-me o teu corpo, para que eu entrasse
na sua floresta em busca de uma clareira. Perdi-me
por entre as folhas e flores de uma vegetação de
murmúrios; e quando ouvi um canto de pássaros
anunciarem a madrugada, já não precisei de
nenhum graal para descobrir o teu segredo
Nuno Júdice
O amor
Ao dizer que te amo é
como se as portas da vida se
abrissem, e uma luz nascida de dentro
do desejo de ti me trouxesse
até mim. Mas ao dizer
que te amo, são as portas
da noite que se fecham, e é
contigo que espero a última
madrugada, onde entre
mim e ti
nenhumas portas existam.
Nuno Júdice
Lamento de Orfeu
Quero chegar à ideia, tocar o seu corpo
abstracto, e sentir na sua pele as palavras que compõem
a frase musical do espírito. Para isso, o meu olhar
procura o campo das sensações, percorre-o com
a lâmina acerada da sua luz, e recorta de entre
o magma dos sentimentos a figura exacta
do amor. Tenho de encontrar a pura expressão
do som, o mais alto acorde de entre os que envolvem
a sua voz, e pedir aos deuses que me emprestem
um vocabulário de nuvens, para que a sua névoa
desça ao fundo dos meus olhos, e obscureça
a linha da razão. A cegueira da alma restituir-me-á
a visão que só os dedos pressentem, quando
te encontram; e voltarei a ver, por entre
as sombras, o rosto amado.
Nuno Júdice
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