Programa do Festival

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Palavras de Cecília Meireles

Vôo

Alheias e nossas as palavras voam.

Bando de borboletas multicores, as palavras voam

Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,

as palavras voam.

Viam as palavras como águias imensas.

Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.

Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós, em redor de nós as

palavras voam.

E às vezes pousam.

Cecília Meireles


Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.


Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.


Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

- não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

- mais nada.


Cecília Meireles




Numa noite de lua escreverei palavras


Numa noite de lua escreverei palavras,

simples palavras tão certas

que hão de voar para longe, com as asas súbitas,

e pousar nessas torres das mudas vidas inquietas.


O luar que esteve nos meus olhos, uma noite,

nascera de novo no mundo.

Outra vez brilhará, livre de nuvens e telhados

livre de pálpebras, e num país sem muros.


Por esse luar formado em minhas mãos, e eterno,

é doce caminhar, viver o que se vive.

Porque a noite é tão grande... Ah,quem faz tanta noite?

E estar próximo é tão impossível


Cecília Meireles




Canção da Alta Noite



Alta noite, lua quieta,

muros frios, praia rasa.

Andar, andar que um poeta

não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.

O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,

não necessita de sono.

Andar... Perder o seu passo

na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,

nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente

Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,

andar por andar - somente.

Não necessita de nada.

Cecília Meireles



Timidez



Basta-me um pequeno gesto,


feito de longe e de leve,


para que venhas comigo


e eu para sempre te leve...


- mas só esse eu não farei.


Uma palavra caída

das montanhas dos instantes


desmancha todos os mares


e une as terras mais distantes...


- palavra que não direi.


Para que tu me adivinhes,

entre os ventos taciturnos,


apago meus pensamentos,


ponho vestidos nocturnos,


- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,


os mundos vão navegando


nos ares certos do tempo,


ate' não se sabe quando...


- e um dia me acabarei.


Cecília Meireles






Uma pequena aldeia


No canto do galo há uma pequena aldeia

de mulheres risonhas e pobres

que trabalham em casas de pedra

com belos braços brancos

e olhos cor de lágrima

São umas corajosas mulheres

que tecem em teares antigos,

são Penélopes obscuras

em suas casas de pedra

com fogões de pedra

nestes tempos de pedra.

Elas, porém, cantam com frescura,

a leveza, a graça, a alegria generosa

da água das cascatas,

que corre de dentro do mundo

pelo mundo

para fora do mundo.

No canto do galo há, de repente,

essa pequena aldeia,

com essas belas mulheres,

essas boas mulheres escondidas,

essas criaturas lendárias

que trabalham e cantam

e morrem.

O amor é uma roseira à sua porta,

o sonho é um barco no mar

a vida é uma brasa na lareira

um pano que nasce, fio a fio.

A morte é um dia santo

para sempre no céu.


Cecília Meireles

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